A artista Vani Caruso costuma deixar-se atravessar pela linha. Linha da vida, linha do desenho, linha/objeto, linha que une, linha que separa, linha que acolhe e recolhe. Linhas e pontos. Na transição entre um ponto e outro, num dia comum, como outro qualquer, percebe o que acontece todos os dias, anos a fio.
Como foi que isso ficou escondido?
Essa poderia ser a primeira pergunta, mas habitada pelo próprio silêncio Vani Caruso encontra o silêncio que habita o outro.
Será que habita?
Todos os dias, quase no mesmo lugar, com quase a mesma roupa, a protagonista dessa série conecta-se com o sagrado. Palavras mudas. O gesto repetido corre pelo terço. Dia após dia, horas a fio. Ações do cotidiano que atravessam a artista. Fazem delas as suas ações. Silêncio profundo. Talvez seja a intenção de buscar o silêncio que faça essa ação se repetir, repetir, refletir. Talvez seja só o hábito.
Como saber?
Será que é preciso saber?
A sequência de fotografias mostra o único gesto presente na ação. A postura da mão. Quase capta a respiração. Respiração esta, que há de se aquietar enquanto o espectador é convidado a um caminhar lento e consciente pelo espaço vazio até que ele possa assim alcançar as imagens, a sequência de mais e mais do mesmo e as suas palavras que já não são mais mudas. O livro de artista encarrega-se da sequencialidade, do tempo e da narrativa. Narra o cotidiano da simplicidade. E sobre o que acontece todos os dias eu pergunto.
O que mesmo acontece todos os dias?
A sublime presença do presente, ausência do passado e do futuro. É sempre sobre o que acontece aqui e agora. A sublime presença dela, todos os dias na casa da artista faz algo mais acontecer. Instiga a presença de um outro ser. De alguém além de si mesmo. Alguém que faz com que ela seja outra. Mais profunda, mais inteira, mas consciente de si. Alguém que não se reconhece porque está entre. Entre o lugar onde se quer chegar e o lugar que se está. Para que a mente se aquiete o corpo há de estar imóvel. Suave.
E você?
Entre.
Estás prestes a se permitir que a suavidade e a força se confundam.
Estás prestes a se permitir o silêncio.
Estás prestes a simplesmente entrar.
Ou sair. Deixar-se habitar pelo próprio silêncio. Ou trazer de si mesmo as memórias dos seus próprios rituais sagrados ou quem sabe da ausência deles.
Valéria Menezes
Artista visual
Outono, 2018.
A liberdade com que Vani Caruso experimenta o desenho, extrapola a simples e literal representação desta modalidade já que a artista conecta em outros suportes, as diferentes séries de obras na exposição entre elas e entre o espaço expositivo de forma adirecional. O som do vento traça sensorialmente as linhas imaginárias e presenciais que se dispersam pelo recinto expositivo e nos conduz ao infinito do dizível. A lucidez dos fluxos, sugeridos e materializados cromaticamente pela alma dos desenhos, em sobreposição ao traço transferido às paisagens, onde a linha transborda energia em construção de tempo e espaços de liberdade para um ponto de vista particular vindo do traço da metáfora.
Andrés I.M.Hernandéz
A EXPOSIÇÃO : Sobre isso que acontece todos os dias, 2017
Apresenta-se, na exposição, uma série de modalidades artísticas contemporâneas que evidenciam o potencial construtivo/processual de Vani Caruso: fotografias, texto, livro de artista...
As imagens refletem sobre o cotidiano individual transferido por procedimentos artísticos; assim a artista faz de suas vivencias manifestos artísticos de contundente força conceitual e visual. O processual aparece, também, na metáfora de acompanhar e catalogar momentos diários do ir e vir da mãe e na afetação recíproca do fazeres da mãe, o ritual do rezo e do registro e inserção deste como obra de arte. A afetação sensorial aparece também como processo: ritual, registro e transformação em obras de arte e a reação do público.
A disposição das obras no espaço expositivo nos induze à uma movimentação presencial macro e micro espacial. A fotografia em grande formato apresenta-se esculturalmente projetada como um frame para incentivar a curiosidade do quê? e o porquê? que posteriormente nos leva à catalogação sanfonada em outros dispositivos artísticos contemporâneos (livro de artista, texto, prateleira de madeira) que configuram uma instalação adirecional em conceito e constituição.
Andrés I.M.Hernández
As heterotopias da dobra
O que lençóis, roupas, bacias, prendedores, aromas tem a nos dizer? Tal composto, em seu arranjo, tem muito a manifestar. A instalação da artista Vani Caruso, no Tote Espaço Cultural, instalada na área externa, que dá fundo as salas expositivas, vem de encontro ao território do doméstico e celebra as heterotopias.
De acordo com Michel Foucault as heterotopias são os quaisquer outros lugares que criamos e refletimos, existindo uma espécie de união ou mistura análoga, opondo-se as utopias. Para uma criança a cama dos pais é local de criação de mundos imaginários, uma grande heterotopia segundo o autor. Assim como o espaço externo do Tote alimenta e potencializa as heterotopias de Vani Caruso, que as desenvolve e nos propõe.
Na medida em que o espectador atravessa a obra, experienciando a sua materialidade: os afetos, a sensibilidade do corpo e o presente-passado são convocados, trazendo à tona lembranças, gestos, aromas, falas, sombras, pensamentos ocultos e manifestos. Uma experiência sensível que mistura as memórias e a expressividade do corpo.
A instalação, no todo, nos presenteia com um novo olhar sobre e através do corpo. Buscando dizer, expressar e manifestar um presente-passado que celebra as emoções e as fantasias. Como pontua Foucault:
Meu corpo está, de fato, sempre em outro lugar, ligado a todos os outros lugares do mundo e, na verdade, está em outro lugar que não o mundo. [...] O corpo é o ponto zero do mundo, lá onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo está em parte alguma: ele está no coração do mundo, este pequeno fulcro utópico, a partir do qual eu sonho, falo, avanço, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. (FOUCAULT, 2013, p.14)17.
Danilo Garcia
Curador