lll Edição Residência ACHO 2022-2023 / O destino das imagens num mundo porvir
Em 2022 fui convidada a participar da Residência do ACHO – arquivo de fotografias órfãs. Como quase sempre meus trabalhos são pautados pelo acaso e pela intuição aceitei o convite. Resolvi então visitar o ACHO, espaço enorme, com muitas fotos, álbuns, rasgos de fotos... e me surpreendi com uma sensação estranha e com uma vontade de revisitar meu arquivo pessoal de fotos e cartas. Foi nessa imersão em meu arquivo, que pude observar que havia fotos de que eu não me lembrava, e outras que lembrava pouco. Fui em busca de meus livros de cartas de 1972 a 1976, época em que namorava meu marido, encontrei relatos de que também não tinha a mínima lembrança. Foi então que percebi que já vinha fazendo um trabalho sobre a memória – lembrança/esquecimento, que tinha tudo a ver com a proposta desta residência- “O destino das imagens num mundo porvir”.
territórios possíveis
Processo criativo
neste trabalho, que já estava iniciado, vi o relato da minha vida presente, como se eu estivesse registrando para não esquecer. cada momento ou dia significativo, registrava com desenho, costuras, sobreposições, em uma tira de papel vegetal, costurada a anterior, e hoje ele está com 18 metros. é um trabalho infinito.
fotos de cinthia piccelli
Cartografias de Territórios Geo emocionais
processo criativo
Continuando a pensar meu trabalho e minha pesquisa, fui novamente atravessada pelo acaso... Assistindo a um filme no Netflix – “Caminho da Memória” encontrei uma outra sequência para este trabalho. O filme tratava-se de: “ Um investigador particular de mente, em Miami maior referência quando se trata de recuperar memórias perdidas ou distantes e devolvê-las a seus contratantes. Ao colocar as pessoas em uma máquina para reviver ou resgatar memórias ele diz: “Você vai embarcar em uma jornada. Uma jornada pela memória. Só o que tem a fazer é seguir a minha voz.” Então, inspirada nesta trama, pensei nestes Caminhos da memória, agora sem a tecnologia, de um modo analógico/manual, com um Rolo de papel. Outra inspiração e referência para este meu rolo, foram os trabalhos e história do artista indígena Jaider Esbell, a construção por camadas e a afirmação de que a realidade tem várias dimensões que se interconectam e se sobrepõe, se aglutinam nestes múltiplos mundos entrelaçados. Assim surge meu 2º Trabalho – Cartografias de Territórios Geo emocionais, que trata do passado, presente e do futuro, um porvir.
não é mais apenas a minha história…
são texturas e costuras,
os momentos de vida de cada pessoa…
resíduo temporal
processo criativo
… E construindo estes rolos, com rasgos, gestos, pedaços , restos, vestígios, sobreposições, mergulhada em meu arquivo, surge o meu 3º trabalho – Resíduo temporal, lâminas com sobreposições de rasgos de fotos, pedaços de cartas, desenhos, costuras para serem colocadas em uma caixa em acrílico, como se estivesse guardando todos estes vestígios de um tempo passado, revisitados para um futuro porvir.
reflexões
Contradições que o trabalho dissolve no longo percurso de seu próprio processo e resultado, que a rigor não teria fim, assim como também é difícil estabelecer um começo.
As imagens estão imersas no papel o mínimo suficiente para serem, aparecerem e não perturbarem, frequentemente dissolvendo-se no vazio, e, no entanto, emergindo como presença essencial na sua frágil potência. Estando assim em estado de suspensão.
O espaço é o dia, a hora, o momento do acontecer, no qual as imagens, palavras e desenhos emergem. O traço, vestígio do corpo, do gesto, é elemento comum entre o desenho e a palavra. É como ler um calendário sem datas, histórias contadas ao longo de uma vida.
O instante se refaz a todo instante... somatória de cacos... sempre algo está acontecendo sempre ali.
Sinais da passagem do tempo nas imagens e no pensamento repousam, e ainda há vibrações com a energia residual do gesto, do enrolar e desenrolar dos Rolos. Rolos estes como um convite à curiosidade tátil do visitante.
Os fragmentos e as coisas se transformam, deles emergem outros conteúdos, em contraste com o inerte, apenas o branco e o preto, o translúcido, a transparência e a luz são vozes que cantam outras melodias, embora ainda sejam audíveis os significados de origem.
Somos uma combinação do que lembramos com o que esquecemos, cada um de nós é, porque tem suas próprias memórias ou fragmentos dela, pois o aspecto mais notável da memória é o esquecimento.
E talvez o tempo seja realmente feito de esquecimento... somos aquilo de que nos lembramos!!!
Vani Caruso - 2023
TERRITÓRIOS POSSÍVEIS, CARTOGRAFIAS GEO EMOCIONAIS, RESÍDUO TEMPORAL
vani caruso
O finíssimo papel japonês dos Rolos e Caixas de Luz, são a superfície mais abstrata que se poderia encontrar, quase transparente, para que do esvaziamento da superfície, emerjam imagens, como se só ali pudessem ser reveladas certas manifestações potenciais da vida. Contradições que o trabalho dissolve no longo percurso de seu próprio processo e resultado, que a rigor, não teria fim- assim como também é difícil estabelecer um começo. Na busca de entender de onde parte ou o que faço? Como torno um objeto esquecimento, ou memória? O que resta? Para onde foram? Porque foram para algum lugar, mesmo que tenham se transformado em esquecimento, me aproprio em meus trabalhos não do desenho só, mas das linhas...
-
pois as linhas que compõem o desenho me são muito férteis, constroem mapas, textos e pistas.
O meu desenho é aquilo que encontro na Linha, a intersecção entre imagem e palavra, pego o caminho do meio, deixo o desenho e a palavra para trás, e crio um outro caminho.
Neste lugar do esquecimento, o qual as pessoas na verdade afastam de suas vidas, eu vivo esta experiência, e tento falar ou expressar do que é esta matéria do esquecimento, através desses meus trabalhos.
À partir das pontas dos meus dedos, dos meus gestos , nos meus desenhos retrato parte da memória, a lembrança, onde pode se reparar a importância do fundo branco, e como as peças que o compõem são ilhas, rastros, vestígios, rasuras, coisas muito bem contornadas apesar da nevoa, ou de não tão visíveis.
Mas quando falo do esquecimento, pois ele existe, não os desenhos com linhas, traços e vestígios como na lembrança, mas sim com borrões, gestos livres, as vezes com formas outras não, com as dobras do tempo e da vida.
Vejo o esquecimento como momentos, coisas que se movimentam, mas não estão todas conectadas, estão sempre presentes como esculturas. A memória está feita basicamente de esquecimento... e o esquecimento está cheio de memória!!
Talvez o tempo seja realmente feito de esquecimento, funcionamos com o que nos sobrou, principalmente com as memórias que nos sobraram.
Vani Caruso
14/08/2023